16/08/2014


NÃO CHORES POR MIM, ARGENTINA
Por: GILENO GUANABARA, sócio efetivo do IHGRN

As televisões transmitem para o mundo a crise financeira da Argentina. A roda-viva me devolveu alguns fios da memória, quando, para mim, Buenos Aires era a imagem de um mundo romântico que cantava as dores esquisitas pela morte de Carlos Gardel. Visitei Buenos Aires depois, um pouco de suas ruas, o burburinho de sua gente elegante, a grandiosidade da Avenida 9 de julho e o Obelisco, centro e símbolo da capital portenha. Conheci livrarias, o cemitério que agasalha os restos mortais de Evita, o recanto boêmio “Camenito”, suas praças e o Bairro do Boca. Foi assim, como sói ocorrer com outros visitantes. A Argentina para mim deixou de ser tão somente o ritmo malevolente de um tango, ou o som plangente de um bandoneon executado por Piazzola, sem menoscabo de outras facetas de sua musicalidade. A par do enlevo da visita fui tomado por um sentimento de tristeza. Surpreendi-me ao ver pessoas postadas indiferentes nas calçadas. Eram os descamisados, inúmeros, de cabelos loiros e olhos azuis, dirigindo uma súplica, em troca de um agradecimento antecipado, rabiscado num papel: Estoy a pedir su ayuda. Gracias.

A História recente dos países da América Latina é bastante significativa face a trajetória no que tinha de assemelhado com a Argentina. A pujança de sua economia se retratava na robustez de sua escolaridade, cultura e de suas transações mercantis. O potencial econômico do Mar del Plata e as exportações de carne e trigo a fizeram a sexta economia mundial, passando ao largo de crises periódicas do capitalismo industrial. Tempo em que, na cidade de Buenos Aires, o número de livrarias e de escolas em funcionamento era superior às existentes em todo o território do Brasil. Ao se iniciar o século passado, Buenos Aires já tinha em funcionamento o seu Metrô de passageiros, serviço só compatível em cidades como Moscou, Londres, Paris e Nova York.

O declínio intermitente da Argentina perpassa obrigatoriamente pelo Peronismo que dominou inconteste o país durante a primeira metade do século XX. Como lá, o populismo político se alastrou nos demais países da América do Sul, gerando líderes carismáticos e um modelo conservador, em tudo assemelhados, tais as diferenças regionais. Peculiar no Brasil, o trabalhismo de Getúlio Vargas caminhou para substituir a fórmula até então hegemônica da economia ruralista, cooptando lideranças regionais, impondo uma economia urbana pré-industrial e revisando a economia artesanal. A partir dos anos de 1950, consagrou-se um parque industrial na Região Sudeste, mais especificamente em São Paulo, que se tornou polo da indústria metalúrgico/automotiva e se impôs com reflexo nas demais regiões do Brasil. O setor agropecuário permaneceu ativo, embora fragilizado diante das crises, submetido às vacilações do mercado e ao amparo crescente de recursos governamentais.

O ciclo populista na Argentina foi mais perverso, exatamente por não ter incorporado com rigor novas vias de desenvolvimento, a par do seu potencial, ao final da Segunda Grande Guerra. Se a economia mundial se reciclara, a nova política de exportação de comodities exigia novos influxos econômicos, que não foram viabilizados convenientemente. De herança mais consistente ao populismo, a incapacidade política do modelo consagrou, fortalecendo o vínculo mais fácil de convencer a massa trabalhista, que, em sua maioria, mesmo sendo politizada, se partidarizou, favorecida com a concessão dos pleitos salariais, exatamente quando o aguçamento da crise vez por outra a atingia. A abundante riqueza oriunda da fase áurea da exportação serviu para abastecer por muito tempo a máquina estatal, a corrução e a engrenagem dos burocratas, o partido peronista e o sistema policial/militar repressivo, apto contra as turbas assalariadas, desenganadas nas horas de crise.

Em a História não se repetir, salvo como tragédia, o retorno político de Peron ao governo, sem novidade, na segunda metade do século passado, aprofundou ainda mais a crise que corroía a Argentina. Repetiu-se a tragédia anunciada, quando da morte de Evita, em 1950. O Peronismo sozinho não tinha mais forças para governar e, afinal, com a morte do líder, restou associar-se a milongueiros carreiristas. Em consequência da morte de Peron, uma nova Evita ascendeu ao poder, sem forças políticas de apoio, sem envergadura e a economia encolhendo em pedaços. O populismo na Argentina deu seus últimos suspiros. A ditadura dos generais resultou o final do ciclo da decadência. Eis a fase pós-peronista, de truculência fascista contra os jovens, de inoperância governamental, de revolta popular e do desespero pela retomada das Malvinas.

 Os demais países da América do Sul tiveram com o final da experiência populista a implementação de ditaduras militares. Restaurado o regime democrático, raríssimas foram as economias regionais que tinham fôlego para se restabelecer por si. A Argentina não tinha líderes nem projetos de futuro. As Mães de Maio invadiram as praças à procura de seus filhos perdidos e por explicações do passado que não esquecem. A inflação instigou os panelaços. Nascia o simulacro de um novo peronismo.

O lamento/canção Don’t cry for me Argentina, na voz de Madonna, no início da trilha sonora do filme de igual nome, não nos conforta: Será difícil de compreender?.. É fidelíssimo à realidade da vida. Confirma-se a conjunção maldosa de política e família, carisma e populismo de Estado, militarismo, corrução e inflação, em passos de jabuti, e na direção da derrocada do país, até o quadro grave a que chegou.

Desde Adolfo Rodrigues Saa (2001), até o contorcionismo do atual ministro da Economia; de Carlos Menen e outros, aos governos da família Kistchner, diante de credores impolutos, pouco nada resta a contratar, tantas foram os débitos, até a submissão às garras insensíveis dos fundos abutres. Não há Peron, não há outra Evita, a mãe dos pobres, nem Isabelita, para aplacar os rigores do frio que atravessam os Andes e pairam avassaladores sobre sua gente. A Argentina irá se redimir, mais cedo ou mais tarde.  

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