14/01/2015

Marcelo Alves
Marcelo Alves

Os precedentes judiciais em uma federação (I)

Por estes dias, tenho realizado um dos meus sonhos: viajar, sem roteiro ou destino certo, pelos Estados Unidos da América. Chegamos (e, aqui, já falo no plural para incluir a respectiva, sob pena de ser severamente repreendido) por Orlando/FL. Ali, alugamos um carro e tomamos o rumo do norte para muito além dos limites do estado da Flórida. Quando este riscado for publicado só Deus sabe onde nós estaremos.

Aproveitando essa deixa (de estar nos EUA), vou escrever aqui sobre um tema que, no passado, tive oportunidade de estudar: o funcionamento da teoria do “stare decisis” (ou seja, como se dá a aplicação obrigatória dos precedentes judiciais) em uma federação tão forte como o são os Estados Unidos da América. Acredito que esse seja um tema de interesse, nem que seja por mera curiosidade, de todo e qualquer estudioso do Direito.

Desde já advirto que não é algo simples de ser explicado. Dois aspectos, sobretudo, complicam a coisa: a estrutura dual da organização judicial americana, com um complexo sistema de tribunais federais e vários (e também complexos) sistemas judiciais estaduais; e a enorme quantidade de precedentes existentes (sobretudo se comparamos, por exemplo, com a Inglaterra).

Há problemas específicos que devem ser enfrentados, como o valor do precedente de um tribunal federal para os outros tribunais federais, o valor do precedente de um tribunal federal para os tribunais estaduais, o valor de um precedente de um tribunal estadual dentro do seu próprio sistema, o valor de um precedente de um tribunal estadual para os tribunais federais e o valor de um precedente de um tribunal estadual de um Estado em relação aos tribunais de outros Estados. Uma sistematização que imponha generalizações para estas e outras questões, mas que também atenda às exceções ou retrações, somente pode ser encontrada se o estudo do assunto for sistematizado.

A sistematização que proponho, a ser desenvolvida em três artigos/crônicas, é a seguinte: a) a vinculação vertical ao precedente dentro do sistema judicial federal; b) a vinculação vertical ao precedente dentro um sistema judicial estadual; c) a inter-relação entre o sistema judicial federal e os sistemas judiciais estaduais; d) a inter-relação entre os vários sistemas judiciais estaduais; e) e a vinculação dos tribunais americanos aos seus próprios precedentes.

Por hoje, como manda o bom senso, vamos começar pelo mais simples: a vinculação vertical ao precedente dentro do sistema judicial federal.

Em primeiro lugar, os precedentes da U.S. Supreme Court são obrigatórios para as U.S. (Circuit) Courts of Appeal (os tribunais de apelação intermediários) e as U.S. District Courts (cortes de primeira instância). Nada mais simples: apenas corolário da regra de que os precedentes de um tribunal superior são vinculantes para os tribunais inferiores. Resta tão-só lembrar que, na hipótese de existirem decisões contraditórias do Supremo Tribunal, deve prevalecer, como de seguimento obrigatório, a última, cronologicamente falando.

Pelo mesmo motivo, os precedentes de uma Court of Appeal são obrigatórios para as District Courts da mesma jurisdição. Entretanto, não são obrigatórios para as demais Courts of Appeals ou para as District Courts de outra jurisdição, apesar de guardarem o devido grau de persuasão.

As decisões de uma District Court não são vinculantes para as demais District Courts.

A regra de vinculação vertical ao precedente nos limites de um sistema judicial estadual é apenas um pouquinho mais complicada.

Dentro de um sistema judicial estadual, em virtude da regra geral, as decisões de uma Court of Ultimate Appelation, que está no ápice da organização judiciária, são obrigatórias para os demais tribunais a ela inferiores. Quanto a isso, não há maiores dificuldades.

Todavia, não está no todo definido qual é o status das decisões dos vários tribunais intermediários de um sistema judicial estadual (na maioria dos Estados americanos, há vários tribunais de apelação intermediários). Não se discute que as decisões dos tribunais intermediários são vinculantes para as instâncias inferiores da mesma circunscrição judicial. Atendendo a regra geral, mostra-se óbvio. O problema surge quando se têm em mira as instâncias inferiores de outras circunscrições judiciais do mesmo Estado. Aqui, a depender do Estado, segundo a professora Victoria Iturralde Sesma (no livro “El precedente en el common law”, publicado pela Editoria Civitas), uma das duas opiniões seguintes prevalece: “segundo uma linha jurisprudencial, uma decisão de um tribunal de apelação inferior é obrigatório em todo o Estado, a menos que seja derrogado; segundo outra (representada pelos tribunais de Ohio), uma decisão de um tribunal de apelação inferior é obrigatória somente no seu distrito e, portanto, nos outros, seria meramente persuasiva”.

Já as decisões das cortes de primeira instância não são de seguimento obrigatório pelas demais cortes de igual categoria do mesmo Estado.

Bom, vistos hoje os aspectos mais simples do funcionamento da teoria do “stare decisis” nos EUA, semana que vem, se Deus permitir, partiremos para “coisitas” mais complicadas.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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