24/01/2017

 
   
Marcelo Alves

 

O “Code Civil des Français”, de 1804, como muitos de nós sabemos, é também conhecido como o “Código de Napoleão”. Merecidamente, claro, dado o reconhecido empenho pessoal do Cônsul/Imperador na elaboração e promulgação desse monumento legal. O que poucos sabem é que, para além de Napoleão (1769-1821), sob os pontos de vista político e sobretudo jurídico, o Código Civil dos franceses teve um segundo “pai”. Seu nome: Jean-Jacques-Régis de Cambacérès (1753-1824). 

Eminente jurista e homem de estado, Cambacérès nasceu em Montpellier, em 1753, no seio de uma nobre família de juristas. Em 1772 formou-se em direito e sucedeu o pai na profissão. Embora moderado, apoiou a Revolução Francesa em 1789. Foi até eleito, como suplente, para o encontro dos Estados Gerais. Entre outras coisas, foi juiz/presidente do Tribunal Criminal de Hérault. Participou da Convenção Nacional que proclamou a 1ª República Francesa em 1792. Durante a Revolução, foi membro do Comitê de Defesa Geral e do famoso Comitê de Segurança Pública (numa fase bem mais tranquila deste), diplomata e Ministro da Justiça. Apoiou Napoleão no 18 de brumário. Durante o período do Consulado, de 1799 a 1804, foi um dos chefes de Estado, como 2º Cônsul, juntamente com o 1º Cônsul Napoleão Bonaparte e o 3º Cônsul Charles-François Lebrun (1739-1824). Pertenceu à Academia Francesa. Foi arquichanceler do Império. Dirigiu o Conselho de Estado. Exerceu muitas vezes de fato o poder imperial, quando da ausência do Imperador da França. Em suma, em vida, na política francesa, da Revolução ao apogeu napoleônico, além de “pai” do “Code Civil des Français”, Cambacérès foi quase tudo. 

Entretanto, sem dúvida, para a posteridade, o maior legado de Cambacérès foi o Código Civil francês, cuja elaboração e aprovação devemos muito a ele. Na verdade, Cambacérès foi o responsável pela elaboração de pelo menos três projetos de Código Civil para a França. Como explica Antonio Padoa Schioppa (em “História do direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea”, edição da WMF Martins Fontes, 2014): “A [primeira] iniciativa para a composição de um Código Civil foi encaminhada no ápice do período jacobino: no verão de 1973, a Convenção encarregou uma comissão de escrever um projeto de código. Quem de fato o realizou foi um jurista que teria um papel fundamental nos quinze anos seguintes, Jean-Jacques Régis de Cambacérès (1753-1824). Natural de Montpellier, onde se formara em Direito, havia presidido o tribunal penal de Hérault, sendo em seguida deputado na Convenção, ele foi o autor não apenas deste, mas dos outros dois projetos de código de que falaremos. Na época napoleônica foi segundo cônsul e depois arquichanceler do Império e dirigiu com extraordinária eficácia o Conselho de Estado na composição dos cinco códigos. Pronto a atender docilmente caso a caso às escolhas de quem estivesse no poder, o que o levou a ser qualificado como ‘camaleônico’, Cambacérès foi contudo um jurista dotado de capacidades excepcionais na elaboração de textos legislativos complexos, como demonstram tanto os seus projetos de código como as centenas de lúcidas e pontuais intervenções nas discussões preparatórias dos códigos”. 

De fato, após o golpe de estado de 18 de brumário, uma comissão – composta por Portalis (1746-1807), Tronchet (1726-1806), Bigot de Préameneu (1747-1825) e Maleville (1741-1824) – foi criada para levar a cabo um projeto trabalhado por Cambacérès. Entretanto, como registra o “Dictionnaire historique des juristes français (XIIe-XXe siècle)” (publicado pela PUF – Presses Universitaires de France, sob a direção de Patrick Arabeyre, Jean-Louis Halpérin e Jacques Krynen, em 2007): “Embora não fizesse parte da comissão, Cambacérès presidiu cinquenta das cento e dez sessões do Conseil d'État [Conselho de Estado francês de então] dedicadas ao exame do projeto, assim como assistiu a todas as sessões presididas pelo próprio Napoleão Bonaparte”. E em muitos casos de divergências entre os dois grandes responsáveis pelo Código Civil dos franceses, como na disciplina relativa ao divórcio por mútuo consenso e à adoção, foi a concepção de Cambacérès que prevaleceu no final. 

Cambacérès e sua turma trabalharam muito bem nesse Código Civil que, embora não tenha sido o primeiro criado, é considerado o de maior êxito na história moderna. No que toca aos seus méritos intrínsecos, devem ser destacados no Código, como o faz Antonio Padoa Schioppa, três aspectos: “Nos conteúdos, o código alcançou um excelente equilíbrio duplo: a unificação dos dois ramos da tradição francesa, o romanístico nos países de direito escrito e o consuetudinário no norte do país; e a inserção de uma série de inovações do período da revolução, excluindo dele outros não mais condizentes com a guinada pós-termidoriana. No método, o código pela primeira vez teceu uma disciplina coerente de todo o direito civil, fazendo com que ela ocupasse o lugar de qualquer outra fonte do direito em clara descontinuidade com a tradição histórica de pelo menos sete séculos. Era a resposta à crise agora irreversível do sistema do direito comum. Na forma, o código atingiu um nível de excelência com a adoção de uma linguagem clara e sucinta, magistral ao fixar o preceito da lei em fórmulas breves, sem redundâncias”. Ademais, o Código Civil dos franceses – que Napoleão considerava o fruto mais relevante e duradouro de seu domínio – influenciou os sistemas legais de diversos outros países. Acabou sendo adotado nos países sob ocupação napoleônica, formando as bases dos sistemas legais da Itália, Holanda, Bélgica, Espanha, Portugal e suas antigas colônias (o que inclui o Brasil); além, claro, de outros países – como Alemanha, Áustria e Suíça – que seguiram o exemplo e realizaram suas próprias codificações. 

Registre-se, por fim, que, ao Código Civil, seguiram outros códigos na França – Processual Civil (1806), Comercial (1807), Processual Penal (1808) e Penal (1810) –, que devemos também, em grandíssima parte, ao grande “elaborador de leis” chamado Cambacérès. 


Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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