24/04/2018


 
   
Marcelo Alves

 

Os comentaristas (II)

Se na semana passada tratamos da história e dos principais personagens da chamada “Escola dos Comentaristas”, chegou a hora de explicarmos, mesmo que resumidamente, as razões da difusão e do triunfo, no fim da Idade Média, do método dos “comentaristas” ou “italiano” (“mos italicus”) de enxergar e trabalhar o direito romano. 

Antes de mais nada, o surgimento e consolidação da Escola dos Comentaristas foi uma resposta aos novos tempos – de forte crescimento citadino e mercantil em fins do século XIII e, sobretudo, nos dois séculos seguintes –, para os quais o método essencialmente teórico dos glosadores já não tinha mais valia. Fazia-se necessário adaptar o direito romano redescoberto à vida, mais precisamente às novas instituições e direitos locais (em especial os estatutos das cidades italianas em veloz crescimento) que emergiam Europa afora. 

Para tanto, estavam a postos os tais comentaristas, que, embora rendessem todas as homenagens ao direito romano, não tinham para com este a veneração quase sagrada que era comum aos glosadores. Mais realistas, os comentaristas estavam dispostos a se debruçar sobre todo o arcabouço jurídico de então – o direito romano redescoberto, o direito canónico, o direito feudal, os vários estatutos citadinos – e, orientados por finalidades essencialmente práticas, unificá-lo e prepará-lo para as necessidades políticas, sociais e econômicas deste entardecer da Idade Média. O próprio Bartolo, como registra Jean-Marie Carbasse em “Manuel d'introduction historique au droit” (Presses Universitaire de France – Puf, 2017), “considera a compilação justiniana como um vasto reservatório de palavras e conceitos no qual o jurista poderia trabalhar à sua própria conta. Ela não é mais que uma matéria-prima própria a ser refundida em vistas de compor um novo direito. Assim, Bartolo não hesita em fazer uso de outras fontes, concorrentemente às fontes romanas, em particular os estatutos municipais das cidades italianas e o direito canônico”. 

Ademais, ao contrário do caráter assistemático do trabalho dos glosadores (que não tinham um cuidado maior em interligar e harmonizar a análise dos vários textos glosados), nesse contexto de integração de várias ordens jurídicas, uma das maiores preocupações dos comentaristas era dar à sua obra de interpretação e criação do direito um caráter sistemático e harmônico. Como explica António Manuel Hespanha em “Panorama histórico da cultura jurídica europeia” (Publicações Europa-América, 1998), com a expansão desse “novo tipo de vida econômica e social a regiões cada vez mais vastas e com estabelecimento de laços comerciais intercitadinos e inter-estaduais, tornou-se necessário que estes princípios de direito novo introduzidos pelos iura-propria nas cidades italianas fossem integrados no ius commune (romano-justinianeu) e que este, de um amontoado de normas (agora) de proveniência diversa (romano-justinianeu, romano-vulgares, canônicas e estatutárias), se transformasse num corpo orgânico dominado por princípios sistematizadores, que correspondesse ao ideal intelectual de um discurso orgânico, embora, como dissemos, respeitador dos pontos de vista dissonantes. Está, portanto, em pleno desenvolvimento um processo de integração de princípios novos – oriundos de necessidades de novos estímulos sociais (aqui incluídos os culturais) e inicialmente incorporados nos direitos próprios, mais sensíveis à vida – no ius commune. O ideal de concórdia legislativa é perseguido pelos juristas não só no limite do direito romano-justinianeu (objectivo que, como vimos, não era de todo estranho aos glosadores), mas relativamente a todo o ordenamento jurídico positivo. A contínua referência, a partir do século XIV, ao direito antigo e ao direito novo, e, sobretudo, ao problema das suas relações mútuas, reflecte plenamente o processo histórico de actualização e alargamento do direito comum”. 

É importantíssimo frisar que, nessa nova aventura intelectual, os comentaristas fazem uso de processos racionais cuidadosamente disciplinados por regras de lógica, retiradas dos filósofos clássicos – de Aristóteles, sobretudo – e da escolástica tomística em voga, o que era, para os fins do direito, algo inédito até então. Essa foi uma ferramenta filosófica fundamental para uma empreita desse jaez, que exigia uma mentalidade analítica e, sobretudo, uma enorme capacidade de construção e sistematização de conceitos. 

O bom fruto disso tudo é visível na qualidade emprestada aos comentários, frequentemente extensos, dos textos romanos refundidos. Peguemos o caso do multicitado Bartolo. Ele foi, sem dúvida, um grande inovador do direito, tendo construído inúmeros novos conceitos jurídicos e sistematizado outros tantos, derivados do direito romano redescoberto, que chegaram aos nossos dias. No direito constitucional, por exemplo, é célebre a doutrina “bartolista” acerca das relações e das divisões de poder entre as grandes entidades políticas (a exemplo dos impérios e das nações) e as coletividades regionais ou locais (cujo exemplo mais visível seria a cidade). Também é célebre a doutrina “bartolista” concernente ao “conflito entre leis” – que se dá entre sujeitos de direito residentes em diferentes jurisdições, com sistemas legais próprios e frequentemente conflitantes –, citada e repetida por séculos, que está na origem de muitas das doutrinas contemporâneas do direito internacional privado. 

Por fim, apesar da propensão reformista dos comentaristas em comparação aos glosadores, ainda aqui se mantém a ideia de que o direito, fundado sobretudo no direito romano redescoberto, é um repositório da experiência humana e um conjunto de normas que o intérprete pouco pode alterar. A ordem jurídica dada era algo basicamente indiscutível, mesmo quando ela se mostrava desatualizada. Toda e qualquer sistematização ou mudança, se é que ela era possível, tinha de ser efetuada dentro dessa ordem jurídica prefixada autoritariamente fazia séculos. 

De toda sorte, tudo – ou quase tudo, vão dizer alguns – tem um fim. Não foi diferente com a Escola dos Comentaristas. Como anota Paulo Jorge de Lima em “Dicionário de filosofia do direito” (Sugestões Literárias S.A., 1968), ao final do século XV, essa “escola estava em decadência, hostilizada pelos humanistas, os quais, voltados para o estudo da Antiguidade clássica, passaram a combater os juristas medievais, censurando-lhes o uso do método escolástico, o emprego do latim bárbaro e o desconhecimento das letras, da história e das instituições antigas. A obra de Giasone del Maino, apontado como o derradeiro dos comentaristas, mestre de Andrea Alciato, prenunciava já a nova orientação da chamada Culta Jurisprudências do período renascentista”. Mas isso é outra história. 

Marcelo Alves Dias de Souza 
Procurador Regional da República 
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL 
Mestre em Direito pela PUC/SP

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