24/04/2018

   
Marcelo Alves



Os glosadores (II)

No artigo da semana passada, nós tratamos aqui da “Escola dos Glosadores”, também apelidada de “Escola de Bolonha”, que, em fins do século XI e durante os séculos XII e XIII, dedicou-se à aventura de “redescobrir” o direito romano (leia-se: o “Corpus Iuris Civilis” do Imperador Justiniano), estudando-o com propósitos essencialmente teóricos. Focou-se essencialmente na história da Escola e nas biografias (muito mais que resumidas) dos seus luminares, entre eles o lendário Pepo, o fundador Irnério e seus discípulos Búlgaro, Martinho, Jacobo e Hugo, passando por Rogério, Pillio da Medicina, o Piacentino e João Bassiano, e terminando com Azzone e Acurssio, aquele professor deste último, que, por sua vez, já mestre, se fez o representante máximo dessa jurídica medieval. E deixou-se para hoje a análise propriamente dita do método dos glosadores, em termos de forma, conteúdo e resultado. 

Formalmente, o trabalho dos glosadores assemelhava-se ao dos gramáticos de então: visava a explicação de um texto, neste caso, o texto da compilação de Justiniano. O mestre lia o texto e parava em frase ou mesmo palavra importante ou difícil, para propor uma explicação, ou seja, uma “glosa”. Como explica Jean-Marie Carbasse em “Manuel d'introduction historique au droit” (Presses Universitaire de France – Puf, 2017), “essas glosas, primeiro orais, eram em seguida manuscritas, quer pelos próprios mestres (e, nesse caso, fala-se de uma glosa “redigida”, glossa redacta), quer por um ouvinte, qualificado de “repórter” (reportator: e agora se fala de uma glosa reportada, glossa reportata). As glosas eram algumas vezes anotadas entre as linhas do texto [justinianeu] (glosas interlineares) e, mais frequentemente, à margem deste (glosas marginais). Elas eram em geral identificáveis: o seu autor era mencionado por sua sigla (uma abreviação do seu nome, por exemplo W. para Irnerius/Wernerius, M. para Martinus, Pla. para Placentin, etc.) posta ao final da glosa”. 

Do dito acima, dessa análise texto a texto, palavra a palavra, intui-se o carácter analítico e, sobretudo, não sistemático da coisa. De fato, os glosadores faziam análises isoladas de cada passagem do texto, primeiramente a partir das suas “leituras” (a já referida oralidade), em seguida postas no papel sob a forma de glosas interlineares ou marginais e, só muito raramente, sob a forma de texto mais completo, chamado de “apparatus”. Parece mesmo natural que uma atividade intelectual desse tipo se desenvolva, em regra, sem uma preocupação maior em interligar e harmonizar a análise – e o produto desta, por consequência – dos vários textos glosados. 

Quanto ao conteúdo/resultado das glosas, o método bolonhês primava pela fidelidade ao texto de Justiniano. Como relata António Manuel Hespanha, em “Panorama histórico da cultura jurídica europeia” (Publicações Europa-América, 1998), era predominante a ideia entre os glosadores “de que os textos justinianeus tinham uma origem quase sagrada, pelo que seria uma ousadia inadmissível ir além de uma actividade puramente interpretativa destes textos. A actividade dos juristas devia consistir, portanto, numa interpretatio cuidadosa e humilde, destinada a esclarecer o sentido das palavras (verba tenere) e, para além disso, a captar o sentido que estas encerravam (sensum eligere)”. 

Apesar do caráter assistemático dos seus trabalhos e da fidelidade quase religiosa ao texto justinianeu, cabe aos glosadores, como explica o mesmo António Manuel Hespanha, “o mérito de terem recriado, na Europa Ocidental, uma linguagem técnica sobre o direito. Não se trata mais de descrever ou reproduzir algumas normas ou fórmulas de direito romano, com intuitos exclusivamente práticos, como tinha sido relativamente comum nos estudos de arte notarial usuais em algumas chancelarias eclesiásticas ou seculares. Trata-se, agora, de começar a fixar uma terminologia técnica e um conjunto de categorias e conceitos específicos de um novo saber especializado – a jurisprudência”. 

Bom, como dito no artigo da semana passada, isso tudo conheceu o seu clímax por volta de 1240, quando Acurssio reúne o conhecimento doutrinal da Escola dos Glosadores na famosa “Magna Glosa”. Mas se o trabalho de Acurssio pôs fim à aventura dos glosadores, a longa história do renascimento do direito romano não parou com eles. Esse trabalho já prenunciava uma nova fase. Veio, em seguida, em fins do século XIII, a “Escola dos Comentaristas”, sobre a qual conversaremos na semana que vem. 


Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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